Olho fixamente para a parede da sala do apartamento onde moro. À penumbra, apenas refletidos pela bruxuleante cadência de uma vela, emergem os contornos geográficos do mapa mundi. Em cada margem, nos simples traçados, destacam-se universos tão desconhecidos, cheios de cores, e línguas, e aromas, e Caos. Ah! O Caos, esse destino reconhecido e amado pelos meus sentidos, sempre desejado a cada nova imersão no âmago da vida, no renovado afivelamento das imensidões de minha mochila, nas conspirações e sedes dos meus olhos, pele e espírito.
Dedico minha atenção a esse momento, recostado sobre o sofá, na agonia do vinho e da magia islandesa de Sigur Rós, relembrando minha última viagem. Destino? Os imensos e enigmáticos desertos de uma das primeiras civilizações de que se tem compreensão: Egito!
Calmamente, organizo o necessário dentro de minha mochila, receptáculo de experiências e invólucro do mais puro sentimento de liberdade a que eventualmente sou destinado, mas o pensamento voa longe, diferentemente das vésperas de outras viagens já empreendidas, e questiono divagações tão minhas silenciosamente...
O EGITO
Desembarco, ainda narcotizado pela extensa e desconfortável viagem até a cidade do Cairo, capital daquele país. As primeiras impressões de um novo lugar sempre me assaltam sobremaneira, e já fora do aeroporto, até então no hiato do movimento, sou fustigado pelo clima árido e sol escaldante da atmosfera egípcia.
Considero-me um viajante esteta, sempre visando apreender a sutileza dos pormenores, a alucinação dos apontamentos da Beleza, e que felicidade senti ao me saber naquele território tão emblemático, palco de tantas elucubrações, desenhado em nossas infâncias, aguçando-nos enquanto jovens e mais senhores...
...mas esse frenesi foi interrompido inicialmente pela confusão de culturas que meus olhos experimentavam: já na saída do aeroporto, a multidão se anunciava oferecendo os mais diversos serviços, causando um pequeno sufocamento inicial. Já livre das inconveniências primárias, lancei-me em direção à planície de Giza, onde estão encravadas as misteriosas pirâmides.
RIO NILO, PIRÂMIDES, ESFINGE
Do aeroporto à cidade de Giza, que fica no lado ocidental do Rio Nilo, entidade cultuada pelos antigos egípcios como uma manifestação divina, conheci o perturbado tráfego local, sobre o qual não sou capaz de encontrar adjetivos.
Nos termos da tradição egípcia, o território ocidental do Nilo era dedicado ao culto dos mortos enquanto que a parte oriental era o local onde os vivos moravam, tais compreensões baseadas na trajetória solar. Sendo assim, as grandes pirâmides foram vultosas construções destinadas ao sepultamento dos reis ancestrais.
Tive a sorte, na ocasião, de hospedar-me defronte às pirâmides, e já nesse primeiro contato, minha compreensão de magnitude se rendeu timidamente à apoteose dessas construções: alinhadas precisamente, as pirâmides de Quéops, Quéfren e Miquerinos, pai, filho e neto, acompanhadas de túmulos piramidais de menor expressão. À frente da tumba do rei Quéfren, como uma guardiã milenar, emerge a figura da Esfinge, também circundada de inúmeros mistérios, sendo ela a maior obra dessa natureza encontrada no Egito até o presente momento.
Após um rápido café da manhã, servido à maneira árabe, desloquei-me ao complexo das pirâmides e lá, bombardeado com as informações do guia, fui levado a universos incompreensíveis a minha frágil imaginação, tão nova e incipiente frente àquela história milenar, mas a sede de novos arrebatamentos nunca foi amena em meus poros.
CLAUSTROFOBIA ENTRE TESOUROS
Dentre as sensações únicas vivenciadas nesse dia, entre elas se destaca a possibilidade de ter adentrado na grande pirâmide de Gizé, dedicada ao rei Quéops, e nesse atrevimento, misturada à sensação claustrofóbica e sufocante de percorrer o estreito corredor que levava à câmara onde fora sepultado o nobre, senti novamente aquela extravagante sensação de pequenez quando em contato com a grandiosidade deste mundo incrivelmente belo e fantástico.
Era o contato inaugural e já me sentia extasiado, no entanto muito estava por vir e minha ignorância não possuía fundos.
Em visita à cidade do Cairo, mais precisamente ao principal museu da megalópole, foi-me apresentada uma pequena parcela do que era a riqueza artística e material da época faraônica, bem como pude ter contato com as milenares múmias de seus mais conhecidos governantes, e em silêncio sepulcral comparo a grandiosidade de uma civilização que conseguiu vencer as intempéries do tempo com suas manifestações artísticas e espirituais com a nossa sociedade moderna, frágil e débil, sustentada pela volatilidade e superficialidade de seus apontamentos.
ABU SIMBEL, TEMPLO DE RAMSÉS II
Sigo em minha viagem, atordoado com tanta poesia atemporal e chego à cidade de Assuã, nas proximidades com a fronteira do Sudão, local conhecido como Alto Egito, em contrapartida à região da Necrópole de Gizé, denominado à época como Baixo Egito. Nas cercanias de Assuã, um dos sítios arqueológicos que me intrigavam já na preparação da viagem: Abu Simbel.
Em Abu Simbel, templo dedicado ao faraó Ramsés II, um dos governantes que mais tempo permaneceu no poder, a certeza de que o Egito iria deixar rasgos indeléveis em minha alma. A precisão e força com que foram esculpidas as estátuas e paredes desse templo, que retratavam desde a batalha de Cadiz à lua-de-mel de Ramsés II e sua rainha Nefertari realmente faziam jus à ideia buscada por Ramsés II de se autoconclamar um novo deus, ao lado de Osíris, Isis e tantos outras entidades cultuadas pela riqueza politeísta da época.
De Abu Simbel ao templo de Nefertari, e assim ao Templo de Philae, ou Templo dedicado à deusa Ísis, passando por uma noite em uma vila Núbia, às margens do Nilo, sob a brisa fresca desse colossal acidente hidrográfico, o Egito se impregnava em minha pele como tatuagem nova, docemente tracejada e de vínculos perpétuos.
NO VALE DOS REIS
Após a breve visita das cercanias de Assuã, dirigi-me a Luxor, cidade onde desenvolveu-se o império faraônico e as dezenas de suas sucessivas dinastias.
Em Luxor, antigamente nominada Tebas, os sinais dessa civilização tão enigmática e desafiadora dos tempos e dos contratempos são vertiginosamente visíveis. Enamorei-me da cidade, de seus templos dedicados à vida, de seus monumentos dedicados à morte, do clima, de tudo...
Foram dias de imensa imersão na cultura antepassada, e na visita dos sepulcros destinados aos icônicos faraós Ramsés IV e VI tive vislumbres únicos e inenarráveis. Reduzo-me em lágrimas, quando relembro do momento quando meus olhos tocaram os corredores e salas fúnebres desses dois túmulos no Vale dos Reis.
A precisão artística destacada no cinzelamento das paredes, contando histórias tão alheias a minha compreensão ocidental e moderna, as pinturas vívidas e policromáticas narrando grandiosidades tão distantes da parcimônia de meus entendimentos, tudo isso, remeteu-me a um macrocosmo onírico e libertador.
Estar ali, envolvido pelo festejo da morte, pela celebração metodicamente delineada do rito de passagem, fez-me questionar o quão miserável me reconheço ao declinar minhas atenções a circunstâncias tão efêmeras e rasas do meu cotidiano, demonstrando apego a condições moribundas de existência.
O SIGNIFICADO DO TEMPO
Se viajar é um convite a viver sensualmente por inteiro, como pontuou Michel Onfray, e são palavras que celebro e me encanta pronunciá-las, são nesses instantes em que me envolvo plenamente com o manto do existir.
A nova música que nasceu em mim enquanto caminhava silenciosamente por aqueles orquestrados corredores da morte ressoará como um mantra de resiliência e gratidão permanentes.
Em um desses memoráveis dias vivenciados na cidade de Luxor, tive o prazer de velejar pelas divinas águas do Nilo, em uma feluca, embarcação utilizada pelos antepassados, presenteado pelo magnânimo carnaval de cores ao entardecer. Estas pequenas sensações de efeitos tão sublimes, como a brisa que me abraçava enquanto tomava um chá sentado na proa do barco, elevam minha infante condição existencial a patamares reais, e sou grato, humildemente grato ao Divino por poder sentir esses encantos.
A viagem foi finalizada na cidade de Hurghada, banhada pelas cristalinas águas do Mar Vermelho, onde pude repousar e dar o devido tempo à assimilação de tudo o que havia vivido até então. Viajar é estar completamente exposto ao desconhecido, e diuturnamente somos apresentados a sensações únicas e intensas, e elas se acumulam e nos arrebatam, e nos preenchem de maneira tão visceral que é necessário o descanso para compreendê-las e senti-las devidamente. Assim, com as águas do Mar Vermelho, vivenciadas à margem e em seu âmago, encerrei a viagem preenchendo os desertos de minha alma com as magnificentes areias desse país que reinventou o significado do tempo.