Arthur Simões nasceu em São José dos Campos, SP, é formado em Direito pela Universidade Mackenzie. Em 2006 deu início ao projeto Pedal na Estrada, uma volta ao mundo de bicicleta, percorrendo sozinho 46 países, em 5 continentes. Voltou ao Brasil em 2009, após 3 anos e 2 meses de viagem. Lançou o livro O Mundo ao Lado, sobre sua viagem, realizou exposições de fotografias e atualmente trabalha com fotografia, viagens e segue em busca de novos destinos.
WAS – Como surgiu a ideia de você fazer volta ao mundo de bicicleta?
Arthur Simões – A ideia surgiu deforma despretensiosa e natural. Pedalo desde criança e a bicicleta já teve diferentes papéis nessa trajetória. Começou como instrumento de liberdade na infância, virou meio de transporte, esporte, hobby e durante a faculdade se tornou uma forma de viajar e conhecer novas culturas. Foi nessa época, enquanto realizava roteiros aqui no Brasil, que soube de um alemão que estava concluindo sua volta ao mundo de bike e custei a acreditar que aquilo era possível. Ficava imaginando como seria fazer uma viagem daquelas. Daqueles devaneios surgiu o embrião da minha viagem e com o tempo ele amadureceu e se tornou um projeto mais consistente, pronto para ser executado. Em paralelo a isso, há também o aspecto do autoconhecimento e questionamentos, que eu acredito ser uma busca que acompanha a maioria dos viajantes.
WAS – Do ponto de vista pessoal, o que é necessário para elaborar um projeto desse tipo? Como ter a certeza que que ele poderá realmente ser executado e finalizado?
AS – Para mim, perseverança e humildade são os elementos fundamentais para se começar e concluir um projeto. Acreditar nele é essencial para que vire realidade, mas estar aberto a sugestões, colaborações e adaptações é tão importante quanto. É muito provável que a pessoa ao elaborar um projeto se depare com uma série de obstáculos, como falta de dinheiro, tempo, parcerias, capacidade técnica, conhecimentos específicos e uma série de outras coisas. Aqui entra a perseverança, pois em alguns momentos pode parecer que nada dará certo e tudo está contra essa empreitada. Há que lembrar que nunca é fácil e só aqueles que não desistem e acreditam firmemente no que estão propondo chegam a algum lugar. Passada essa fase há a execução do projeto. Aqui não há certezas, especialmente quando um projeto trata de desafios ou um grande aventura. O risco está quase sempre presente e o que pode ser feito é um bom planejamento e preparo para que os riscos sejam minimizados. Isso aumenta as chances de que o projeto seja finalizado, mas não é uma garantia. Quando uma pessoa vai para a natureza, muitas vezes está lidando com o desconhecido e o inesperado.
WAS – Como foi o preparo?
AS – O preparo foi menos físico e mais burocrático do que costumam imaginar. Como o Pedal naEstrada – nome do projeto da volta ao mundo de bicicleta – era um projeto longo e relativamente complexo, que envolvia diversos parceiros institucionais, apoios e patrocinadores, nos meses que antecederam minha partida eu estava mais envolvido em deixar tudo ajustado para a partida do que em treinar minhas pernas. Como não havia treinado o quanto eu gostaria, comecei a viagem percorrendo distâncias mais curtas, justamente para meu corpo se adaptar, e em pouco tempo já percorria distâncias bem maiores do que eu achava que conseguiria.
WAS – Todos dizem que essa parte burocrática é a mais difícil. Como você lidou com isto? Em algum momento teve dúvidas sobre a viabilidade do projeto?
AS – A parte burocrática é bem difícil, o projeto pode depender dela e fica claro que a realização não depende só de você, mas de outras pessoas, empresas, organizações e governos. É complexo, mas acredito que com humildade e perseverança possa ser realizado. Há que ter humilde para admitir que o projeto precisa ser alterado e lapidado ao longo dessa jornada e perseverança para não desistir, mesmo quando tudo parece não dar certo. Em vários momentos achei que não conseguiria os patrocínios e parcerias que precisava, mas nunca desisti. Estava disposto a fazer a viagem com ou sem patrocínio, isso me ajudou a sempre seguir em frente e lidar com as dificuldades. Após algum tempo, vi que o toda a energia que havia colocado no Pedal na Estrada (projeto de volta ao mundo de bicicleta) havia dado resultado, era hora de tirar o projeto do papel e cair na estrada.
WAS – Como foi elaborar o roteiro, selecionar os países?
AS – O roteiro foi o início de tudo. Quando resolvi que iria dar a volta ao mundo de bicicleta, sabia o que queria realizar, mas ainda não tinha ideia por onde começar. Inicialmente, me debrucei sobre o roteiro da viagem. Juntei alguns atlas que meu pai tinha, consegui mapas com amigos, cacei livros em bibliotecas e comecei a traçar detalhadamente a rota que iria realizar. Não me limitei por critérios rígidos ou alguma diretriz específica. Queria criar livremente o meu roteiro e para isso quanto menos limitações eu tivesse, melhor seria. Muitas vezes, ao percorrer o mapa, chegava a um país que eu não conhecia, como foi o caso de Mianmar, no Sudeste Asiático, e isso me animava ainda mais a inseri-lo em minha rota. Em linha gerais, a rota foi traçada entre os Trópicos de Câncer e Capricórnio, para evitar com que eu me deparasse com invernos muito duros e não precisasse carregar os pesados equipamentos para temperaturas negativas.
WAS – Esta foi uma solução inteligente para afastar o perigo de climas mais extremos. O que mais você conseguiu prever que te ajudou quando estava em expedição?
AS – Acredito que uma boa seleção dos equipamentos foi algo que me ajudou muito. Bolsas a prova d’água, fogareiro para diversos tipos de combustível e itens de acampamentos versáteis e leves fizeram a viagem ficar mais fácil em alguns momentos. Mesmo assim todos esse planejamento não é garantia de nada, em alguns momentos peguei frio extremo, como nos Andes, calor extremo no Deserto do Saara e as monções noSudeste Asiático. Mesmo assim imaginava que iria me deparar com situações do tipo e estava um pouco preparado para isso.
WAS – Você já tinha a previsão de realizar a viagem durante três anos ou ficou mais tempo do que o previsto?
AS – Estimar a duração de uma viagem como essa é sempre um desafio; é impossível prever tudo que irá acontecer. Sabendo disso, tracei uma estimativa curta e outra longa. A maior tinha 2 anos e meio de duração. Ambas passavam por 28 países. No final da viagem, havia viajado por 3 anos e 2 meses e percorrido 46 países. Foi muito positivo para a viagem, mas passou longe até da minha estimativa mais otimista. Nunca me preocupei tanto em me ater ao roteiro que havia desenhado, sabia era só uma referência e não deveria ser mais que isso, caso contrário poderia ofuscar as principais características de uma viagem autêntica: a imprevisibilidade e liberdade. Uma longa viagem tem vida própria. Para ser bem executada, essa característica deve ser compreendida e mantida, caso contrário há o risco de se realizar toda a jornada de forma mecânica, indo do ponto A ao B e depois ao C, como numa missão ou um trabalho. Acredito que viajar seja ir além disso, é especialmente se abrir para a vida que está em toda parte e isso não combina como mecanicidade.
WAS – Muitos aventureiros sempre tiveram dificuldades em fechar patrocínios pela característica mais aleatória de certas aventuras. Você acha que isso está mudando? Como foi com você? Acha que hoje seria diferente de quando fez a sua volta ao mundo?
AS – Acho que conseguir patrocínio sempre foi algo difícil e pelo o que eu vejo, hoje não mudou muito.Esse tipo de relação não depende só do aventureiro e de seu profissionalismo, depende também do momento da economia do país, da rede de contatos que ele tem e, sempre, de um pouco de sorte para estar na hora certa no lugar certo. Para mim foi bastante difícil também, mas sabendo dessa dificuldade e que dificilmente alguém patrocinaria apenas um projeto esportivo no Brasil, fiz com que o Pedal na Estrada fosse maior que isso. Assim criei um projeto educacional para os estudantes brasileiros, algo que seria realizado enquanto eu viajava. Fiz parcerias com diversas ONGs e isso deu muita consistência ao projeto. A partir daí o Pedal na Estrada começou a chamar a atenção, o que facilitou minha conversa com diversas empresas e me abriu muitas portas. Naquele momento apostei na inovação e na realização de algo novo e inusitado, era uma volta ao mundo de bicicleta – algo raro no Brasil até então – somada a um projeto educacional diferente, tudo isso usando o que havia de melhor de tecnologia naquele momento. Isso fez com que o projeto se destacasse. Hoje o mesmo projeto não teria o mesmo impacto, pois não seria assim tão diferente e desbravador.Para ter o mesmo sucesso que tiver teria que pensar em outras estratégias para atingir os mesmos objetivos: levar o projeto para muita gente, ajudar o maior número de pessoas possível e desenvolver algo inovador, que ninguém fez ainda.Não é fácil, mas isso pode ser a diferença entre um projeto que acontece e outro que não sai do papel.
WAS – Quais as melhores experiências que você teve e as maiores dificuldades?
AS – Acredito que as melhores experiências estejam ligadas a me sentir em harmonia com o local onde eu estava e para isso ocorrer eu dependia especialmente das pessoas de cada região. Quando eu me sentia acolhido e bem recebido em determinada cidade ou vilarejo, ficava mais fácil desenvolver uma relação mais profunda com o local onde estava. O oposto também é verdadeiro e faz referência às grandes dificuldades do caminho. Outra dificuldade era ficar doente, geralmente devido à comida – que era o meu combustível –, num lugar distante.
WAS – Onde se sentiu mais acolhido e onde foi mais rejeitado? (Se é que podemos usar esse termo?) Consegue ilustrar duas situações desses extremos?
AS – O mundo árabe, ao contrário do que as pessoas costumam pensar, costuma ser o lugar mais acolhedor para viajantes. Quanto mais muçulmano, maior o acolhimento. Talvez tenha sido por isso que no Iêmen eu fui melhor recebido. Nos pequenos vilarejos por onde passava e pernoitava, geralmente era recebido com festa e agrados. Encontravam alguém que falava inglês para se comunicarem comigo, tiravam água dos poços artesianos para que eu pudesse tomar banho – e olha que estavam no meio do deserto, onde água era um luxo – e preparavam um banquete para mim numa casa que separavam para eu dormir. Era algo difícil de acreditar de tão impressionante. Até hoje guardo memórias muito boas desse país e seu povo. Em contrapartida, não longe dali, apenas no outro lado do Mar Vermelho estão os países onde não fui bem recebido. Tanto do Djibuti quanto na Etiópia, as pessoas me recebiam com pedras nos vilarejos. Bastava verem que não era dali que pegavam atiravam pedras em mim. Sei que tinham seus motivos, assim, sempre tentei não julga-los por isso, mas a sensação de ser recebido com pedradas não era agradável, ainda mais quando se está sozinho num lugar desconhecido e distante.
WAS – Quais as histórias inesquecíveis que ouviu pelo caminho?
AS – Acredito que cada local e cada pessoa tenham pelo menos uma história interessante para contar, basta saber escutar e observar. Tentava fazer isso com cada lugar onde eu ia.Me perdia pelas vielas de uma cidade de mais de 5 mil anos e até me encontraria aprendendo a ler e escutar a história que seus sinuosos caminhos me contavam. Com as pessoas não era diferente, quase todos tinham uma história interessante para contar para quem quisesse ouvir. Por vezes eram histórias de superação e aprendizado, em outros casos de dificuldades e até milagres. O principal, eram histórias de verdade, de pessoas de verdade, histórias que provavelmente não leremos e nem ficarão registradas para a posteridade. Acredito que esse tipo de vivência seja um contraponto interessante à sociedade do espetáculo em que vivemos, onde a aparência e a imagem prevalecem sobre a realidade, como se algo fosse feito apenas para ser contado e não para ser vivido. Não se sabe mais oque é verdade e o que é inventado.
WAS – Pode contar uma dessas histórias que mais te marcaram para os nossos leitores? Como acha que a comunidade aventureira pode atrair mais a atenção da mídia para estas histórias/vivências reais?
AS – No mundo há milhões de heróis, artistas e pessoas incríveis que vão morrer sem reconhecimento. Sempre foi assim e continuará sendo. Para encontrar tais pessoas, suas histórias e talentos basta ter abertura e sensibilidade. Lembro-me de um senhor no Paquistão que salvou diversos turistas em sua casa de um possível atentado de um grupo extremista, mesmo que para isso tivesse colocado sua segurança em risco. Essa é uma história simples, que passa desapercebida. Hoje, as pessoas buscam histórias espetaculares em lugares incríveis e quase sempre mostram a mesma coisa; e esquecem que na maioria das vezes temos exemplos incríveis ao nosso lado.
WAS – Existe algum destino que você mais se identificou?
AS – Me identifiquei com Mianmar, Iêmen e o norte do Paquistão. São países não muito conhecidos e permanecem relativamente fechados para o mundo. Por terem se isolado, mantiveram seus valores e culturas preservados. São sociedades muito diferentes do padrão ocidental, um padrão presente em quase todo o mundo atualmente. A autenticidade dessas sociedades me conquistou, nada era para atrair turistas ou ganhar mais dinheiro nesses locais.
WAS – Da mesma forma, houve algum país ou local específico com o qual tenha se decepcionado?
AS – Não houve apenas um, mas diversos. Talvez a maior decepção tenha sido com a Índia, um país que sabia que tinha diversos problemas, mas que esperava que fosse minimamente espiritualizado, em função de tantas histórias. No entanto, o que eu encontrei lá, para a minha surpresa, foi um país duro, sofrido, de muita desigualdade e repleto de charlatães e aproveitadores. A espiritualidade se tornou um negócio muito lucrativo para os indianos.
WAS – Quais conselhos você repassa para quem deseja viajar de bicicleta pelo mundo?
AS – Não pense muito e nem espere que tudo esteja perfeito para partir. Marque uma data de partida, faça o seu melhor para planejar a viagem e quando chegar o dia comece com o que tem, depois a viagem irá acontecer da forma que tem que acontecer e, ao final, você terá feito uma viagem única, a sua viagem. Se ainda há dúvidas, basta lembrar do ditado que diz que “o universo conspira a favor dos viajantes”. Acredito que isso seja verdade para os verdadeiros viajantes, aqueles que estão dispostos a abrir mão daquilo que têm para verem o mundo.
WAS – Qual foi o maior aprendizado de viajar sozinho?
AS – Viajar sozinho proporciona uma abertura muito maior para absorver e aprender sobre cada cultura visitada. Sozinho fica mais fácil se desprender de toda bagagem cultural e social que está impregnada em cada um como se fosse a única correta, para observar sem muitos julgamentos e aprender com culturas diferentes. Subjetivamente, viajar sozinho mostra que é possível, desde que se esteja bem consigo próprio, estar bem em qualquer lugar. É a prova de que o mais importante não é simplesmente o que é visto, mas sim como aquilo é visto e absorvido. A partir do momento que se está bem internamente, tudo à sua volta também está bem e não há problema que não possa ser superado.
WAS – Em algum momento pensou em desistir?
AS – Confesso que nunca pensei em desistir. Não por ser durão ou coisa do gênero, mas por sempre achar que estava no lugar certo e fazendo o que tinha que ser feito. Essa certeza fazia com que eu não duvidasse da minha viagem e nem alimentasse comparações com outras possibilidades, como viajar de carro ou de moto ou mesmo ter seguido a profissão de advogado, por exemplo. Quase todos os dias acordava feliz por estar realizando aquela viagem e por poder pedalar por mais uma nova estrada. Até mesmo os maiores problemas eu encarava como possibilidades de aprendizado e isso os deixavam como se fossem parte integrante do caminho e não um obstáculo.